Podia falar-vos da estranheza que é para mim pensar que o Diário de Notícias ou a TSF, tão portuguesas, com uma história que se confunde com a de Portugal nos tempos mais recentes, vão passar a pertencer maioritariamente a um empresário angolano, Mosquito de seu nome, que, pelo que percebi está nisto como investidor e não pelo amor à Comunicação Social.
Podia falar-vos também da estranheza que é para mim pensar que os CTT, uma empresa lucrativa e tão enraizada na sociedade portuguesa, podem (se ninguém travar este desalmado governo) passar a ser propriedade de uma empresa de transportes e mudanças ou, então, propriedade da empresa de correios do Brasil, uma empresa estatal, mais uma empresa estatal de outro país a ficar com uma outra das nossas maiores empresas públicas, imagine-se.
Podia falar-vos da estranheza que ainda me causa saber da perfídia de quererem publicar a lista de pessoas assistidas, dos que recebem apoios sociais, habitação social. Podia falar-vos do espanto que ainda me causa perceber que a atracção pela desonra destes seres que nos governam não tem limites. Podia falar-vos disso.
Podia falar-vos da estranheza que ainda me causa saber da perfídia de quererem publicar a lista de pessoas assistidas, dos que recebem apoios sociais, habitação social. Podia falar-vos do espanto que ainda me causa perceber que a atracção pela desonra destes seres que nos governam não tem limites. Podia falar-vos disso.
Podia falar-vos da revolta que vai alastrando na sociedade perante tantas e tantas coisas estranhas e inquietantes, da violência que vai crescendo, uma violência surda, uma raiva.
As coisas concretas começam a assustar-me. É tudo tão assustadoramente mau e o mal alastra a uma velocidade tal e de forma tão sorrateira que me assusto. Não quero, pois, falar de coisas concretas.
Quero procurar a abstracção, perder-me no infinito abstracto, ignorar as muitas dimensões do espaço, deixar-me ir. Não quero ficar presa na mediocridade que alastra, não quero falar mais da leviandade impiedosa, da maldade gratuita (ou pensada - não sei). Juro que não quero. Hoje quero ir à toa, quero ser levada. Que passe por aqui um anjo ou um pássaro ou um sonho e que me levem por umas horas.
Vou abrir a janela, esperar que um sopro me traga alguma serenidade ou me leve por caminhos que ignoro.
Mas não é fácil. O peso dos dias prende-me o voo.
Mas a incerteza que oculta a luz, os labirintos obscuros, os gemidos nas esquinas, o medo, o muito medo, tudo me prende o passo.
O dinheiro nunca teve cor, mas agora
não tem mundo nem maneiras
A realidade é pesada. Teima em vir agarrar-se às minhas pernas, impede-me de abrir as asas. Tento afastá-la mas não consigo.
- Não. Isto não.
Não quero rostos de cinza, palavras velhas, lamentos sofridos, rugas e tristezas, esgares amargos, lágrimas - não quero.
Quero a largueza de um voo, a doçura de um sorriso, o calor de um corpo livre.
Mas não consigo.
- Não. Isto não.
Não quero rostos de cinza, palavras velhas, lamentos sofridos, rugas e tristezas, esgares amargos, lágrimas - não quero.
Quero a largueza de um voo, a doçura de um sorriso, o calor de um corpo livre.
Mas não consigo.
(O último é um excerto de 'Os derrotados de Abril' de Luís Filipe Castro Mendes).
(As pinturas são de Ilda David).